Nesta quinta-feira (17), o Instituto Paulista de Magistrado (IPAM) realizou em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar) e Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), um encontro virtual com o tema: “Justiça Restaurativa e a Literatura”. As relações entre a obra “Os Miseráveis”, do escritor francês Victor Hugo, e os conceitos dos sistemas de Justiça foram temas do evento.
“Os Miseráveis retrata a luta de 19 anos do personagem Jean Valjean para buscar uma vida normal depois de cumprir pena de prisão por roubar pães para alimentar os filhos de sua irmã durante uma grave crise econômica, além das várias tentativas de escapar da prisão. A obra escrita por Victor Hugo apresenta uma das abordagens literárias mais importantes e atraentes sobre o punitivismo judicial e a desproporcionalidade das sanções aplicadas pela Justiça criminal”, disse a juíza Laryssa Angelica Copack Muniz, coordenadora dos Grupos de Estudos em Justiça Restaurativa e Literatura da Escola da Magistratura do Paraná (Amapar).
Segundo Laryssa Muniz, “a história de Jean Valjean é uma inspiração para quem estuda a Justiça Restaurativa e seus instrumentos de solução consensual de conflitos por meio de práticas restaurativas das relações interpessoais entre autores de condutas criminosas e suas vítimas, na busca da conscientização, do reparo do dano causado e de uma efetiva ressocialização para embasar sentenças judiciais. Precisamos condenar menos e buscar caminhos alternativos”, afirmou.
Ela comentou ainda sobre a virada do personagem. “A literatura nos ajuda a ser mais humanos, reflexivos e críticos. Escolhemos o capítulo X, “O hóspede desperto”, que traz o ponto da virada na vida de Jean Valjean, sua redenção para acreditar na humanidade. Nessa salvação ele encontra pessoas como o bispo Myriel que muda sua realidade. Ao fugir da prisão Jean Valjean é recebido pelo bispo que lhe serve um jantar, só que após o jantar ele rouba os talheres de prata e foge. Quando é preso pelo furto, os policias o levam de volta para a casa do bispo para devolver os talheres e são surpreendidos porque o bispo revela que doou os talheres a Valjean e ainda dá de presente a ele castiçais. O ensinamento do bispo é que Jean Valjean pode escolher sair das sombras e do mal e escolher a luz e o bem”.
Rodrigo Rodrigues Dias, juiz membro de Grupos de Estudos em Justiça Restaurativa e Literatura da Amapar, acrescentou que “é preciso oportunizar a cura do outro, tratar de um conflito junto com o outro, criar vínculos de solidariedade e o bispo Myriel mostrou isso a Jean Valjean, que ele podia confiar nele e que ele não iria entregá-lo novamente para a prisão. Foi uma oportunidade dada para que ele confiasse de novo em uma sociedade que pode não ser apenas punitiva”.
O juiz disse ainda que “o sistema criminal atua para que as pessoas sejam apenas encarceradas, e não assumam suas responsabilidades. Por essa razão elas se sentem vítimas do sistema. Victor Hugo traz isso no pensamento do Jean Valjean. Se ele nunca recebeu a indulgência, como pode exercer sua autonomia? O bispo Myriel fez isso, deu a ele autonomia de sua vida e Jean Valjean morreu carregando os castiçais”.
O secretário de Justiça Restaurativa na Infância e Juventude da AMB, conselheiro do IPAM e debatedor do evento, juiz Marcelo Salmaso, comentou que “toda reflexão da conexão da obra Os Miseráveis com a Justiça Restaurativa vai muito além do uso de métodos de transformação de conflitos, é um convite à toda sociedade de repensar o paradigma de convivência social, superar o individualismo que fomenta a guerra entre todos. A convivência é pautada pela cooperação e pelo cuidado, por responsabilidades individuais, mas também de corresponsabilidade coletiva e social. Nessa passagem de Jean Valjean ele não tem por parte do bispo o mesmo tratamento que sempre teve. Ele recebe outra coisa, tem a necessidade atendida, recebe amor, é reconhecido como ser humano e isso o toca subjetivamente, toca sua alma e inspira sua própria transformação”.
Salmaso concluiu que “outro ponto fundamental é a estrutura social, produtora de violência estrutural, que atinge as pessoas e as motiva a praticar atos de violência e transgressão. O livro mostra isso, a sociedade estava empobrecida, desestruturada e o sistema era opressor. É uma reflexão profunda sobre a corresponsabilidade de toda uma sociedade, seja em qual tempo for, e de refletirmos sobre a estrutura de convivência social”.
A presidente do IPAM, juíza Ana Maria Brugin, agradeceu a presença de todos ao evento e convidou o grupo para apresentar a Justiça Restaurativa em novo encontro a ser programado para o ano que vem.